Espacios. Vol. 36 (Nº 14) Año 2015. Pág. E-2

Dois olhares sobre as políticas educacionais brasileiras: as estatísticas do governo e a sua difusão ao público geral

Two views on Brazilian educational policies: the Government's statistics and its dissemination to the general public

Maurício Marques BRUM 1; Gabriel Eduardo BORTULINI 2; Iuri Almeida MÜLLER 3

Recibido: 31/03/2015 • Aprobado: 12/04/2015


Contenido

1. Introdução

2. Do tratamento da imprensa às estatísticas oficiais

3. A repercussão de duas avaliações do ensino

4. As experiências pessoais

5. Identificação dos conflitos

6. Estratégias de objetivação e subjetivação

7. Considerações finais

8. Referências


RESUMO:

Este artigo discute a forma como as estatísticas educacionais brasileiras e as políticas públicas no setor são divulgadas para a população em geral. Num contexto em que os índices de acesso ao ensino aumentam gradativamente, mas a qualidade não cresce no mesmo ritmo, a imprensa tem papel fundamental no gerenciamento dos dados, a fim de proporcionar à sociedade leiga um entendimento mais claro da situação. Assim, analisamos os procedimentos de reportagens jornalísticas publicadas com cinco anos de intervalo por uma revista especializada (Nova Escola), a fim de detectar as estratégias de elucidação e divulgação dos problemas apontados pelas estatísticas governamentais.
Palavras-chave: Políticas públicas; Educação; Estatísticas governamentais; Imprensa brasileira

ABSTRACT:

This paper discusses how the educational statistics and the public policies in the educational system are informed to the general population in Brazil. In a context in which the access to school increases, but the quality does not improve at the same pace, the press plays a fundamental role in managing official data, in order to provide a clearer understanding of the situation. Therefore, we analyze the procedures of news reports published five years apart by a specialized magazine (Nova Escola), seeking to detect the strategies in elucidating and disseminating the information about the problems pointed out by Government's statistics.
Keywords: Public policies; Education; Government statistics; Brazilian press

1. Introdução

Uma educação de qualidade está entre as premissas básicas para que uma nação possa alcançar um nível adequado de desenvolvimento e avanço nas condições de vida. Com educação, podem ser vislumbradas as possibilidades de somar conhecimentos, aprimorar talentos e melhorar aptidões profissionais. Pode-se, inclusive, impulsionar o desenvolvimento econômico, caracterizado como "um processo de mudança social pelo qual um número crescente de necessidades humanas – preexistentes ou criadas pela própria mudança – são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo decorrente da introdução de inovações tecnológicas" (FURTADO, 1964, p. 29).

No entanto, a forma com que o sistema educacional de um país é gerido pelo Estado reflete principalmente as políticas públicas e sociais desse próprio Estado – isto é, das posições adotadas pelos governantes no que diz respeito à temática da educação, numa visão de longo prazo e independente das suas opiniões partidárias. Demo (1994, p. 14) estabelece que a "política social pode ser contextualizada, de partida, do ponto de vista do Estado, como proposta planejada de enfrentamento das desigualdades sociais". Apesar de muitas críticas ao papel unificador da escola na imposição de um posicionamento estatal – ver, por exemplo, Bourdieu (2011) –, a educação ainda parece ser uma das maneiras mais eficientes de combate a tais desigualdades sociais, sobretudo em países em desenvolvimento. Pela maneira como se estrutura a sociedade, bem como os conhecimentos adquiridos ao longo da trajetória de ensino pela qual passa um indivíduo, o acesso a uma formação adequada, desde os níveis básicos até a pós-graduação, faz com que o cidadão veja se abrirem diante de si oportunidades cada vez mais diversas, simplesmente inacessíveis sem a sua qualificação profissional.

A maneira de mensurar a qualidade da educação oferecida, contudo, é fruto de polêmica e debates. No Brasil, a partir dos anos 1990 e mais fortemente na primeira década dos anos 2000, passaram a ser adotados diferentes sistemas avaliativos com a pretensão de analisar o nível das escolas públicas do país – bem como compará-las com as de outras nações. Entre as motivações para o surgimento de um maior interesse nas avaliações do tipo estava a constatação de que o simples cálculo da qualidade do ensino através de estatísticas de matrículas ou de frequência escolar não trazia mais do que um dado empobrecido e incompleto da realidade nacional.

O presente artigo parte de duas reportagens jornalísticas, publicadas em épocas diferentes, nas quais esse foco de observação é abordado e problematizado. Ambos compartilham o mesmo questionamento de fundo: se o aumento do acesso à escola – observado nas últimas décadas – não era, por si só, uma elevação da qualidade educacional brasileira, o que mais deve ser buscado pelos governantes e demais envolvidos no assunto? As reportagens em questão foram publicadas pela revista Nova Escola em 2006 e em 2011, contrastando as estatísticas crescentes de acesso à educação com os pífios resultados obtidos pelos estudantes em avaliações através do país, valendo-se da experiência dos professores. O primeiro texto, intitulado "O desafio da qualidade", de autoria de Roberta Bencini e Thiago Minami, tornou-se referência ao receber menção de destaque no Prêmio Abril de Jornalismo de 2007. Cinco anos após esse texto, Camila Monroe voltou a abordar o assunto: sob o título "O acesso à escola melhorou. O desafio, agora, é a qualidade", ela trazia uma proximidade na temática abordada, ao mesmo tempo em que, pelo distanciamento temporal em relação ao texto anterior, tornava perceptíveis as evoluções ou estagnações no período.

2. Do tratamento da imprensa às estatísticas oficiais

A necessidade de compreender os resultados das avaliações da educação e a eficácia dos investimentos feitos pelas políticas públicas na área são ressaltados por Porto (2008, p. 182), dimensionando os gastos sociais do Brasil proporcionalmente ao Produto Interno Bruto (PIB). Valendo-se de dados de 2004, o autor observa que nada menos do que 24,4% do PIB da época havia sido destinado à área social. Como apontava Porto, a quantia era muito semelhante à média dos países considerados desenvolvidos, os quais haviam direcionado para o social cerca de 25,6% do valor total das riquezas produzidas ao longo de um ano.

Com efeito, a desigualdade social – medida pelo Coeficiente de Gini – experimentou notável queda no país desde a virada do século. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o dado, que varia de 0 a 1 (sendo 0 a completa igualdade de renda e 1 a completa desigualdade), passou de 0,587 em 2002 para 0,526 em 2012 (IPEA, 2013). Ainda assim, tais números historicamente apresentam oscilações, com o Brasil costumeiramente tendo se situado como uma das nações mais desiguais economicamente do mundo no passado. Muitas vezes, as políticas sociais que ajudariam a combater a desigualdade social deixaram de ser postas em prática "por causa da reação de interesses poderosos que são contrariados por causa da omissão dos possíveis beneficiários" (RUA apud PORTO, 2008, p. 185). A função da mídia é cobrir a realidade de maneira que a sociedade compreenda os interesses envolvidos. Porto (2008, p. 187-188), entretanto, afirma que, muitas vezes, "os setores que viriam a ser beneficiados podem simplesmente não perceber a relevância e o significado dessas políticas, dificultando a mobilização dos mesmos para garantir a sua implementação".

As reportagens aqui estudadas nos fazem atentar para uma mesma necessidade – a tarefa do jornalista de bem gerir os dados a que tem acesso, elucidando para seu público leitor as informações e o contexto representados por cada estatística. Ainda são maioria as reportagens que deixam de ir atrás do significado dos números que chegam das fontes oficiais – mesmo que existam critérios, conceitos e diversas interpretações cabíveis entre o numeral, a porcentagem e o valor absoluto. No caso dos textos observados, houve a sensibilidade em analisar, cinco anos depois, como aquele progresso nítido nas estatísticas estava longe de significar a resolução ou mesmo um avanço importante no rumo da solução dos problemas educacionais brasileiros.

Entre as armadilhas que aparecem para a cobertura jornalística que não se dedica a uma análise das estatísticas, podemos citar como exemplar o tratamento dado ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um país. Considerando que uma nação pode ostentar um IDH tido como "muito alto" se ultrapassar o patamar de 0,800 ponto na escala utilizada (cuja pontuação máxima é 1,000), muitas das análises feitas em reportagens não passam da mera comparação do dado apresentado e parecem se contentar com isso.

Mas pode ser prematuro, por exemplo, afirmar que Hong Kong oferece melhores condições de vida do que o Uruguai por apresentar um Índice de Desenvolvimento Humano superior. Na análise específica de um dado como o IDH, seria fundamental recordar que o cálculo para se chegar ao Índice deriva de três fatores – a expectativa de vida da população no momento do nascimento, o PIB per capita corrigido pelo poder de compra de cada moeda nacional e, por fim, a educação. Esta aparece dividida entre a taxa de alfabetização e a taxa de escolaridade, ou seja, o acesso à educação por parte das pessoas que estão em idade escolar. O IDH, portanto, é resultado de uma média geométrica, com os três fatores possuindo pesos idênticos. Isso dá margem ao surgimento de uma situação em que um país com elevados índices educacionais, tanto na taxa de alfabetização quanto na de escolaridade, possa estar abaixo de outro que tenha um PIB absoluto superior e que, apesar dele, não possua na realidade condições de vida tidas como de padrão elevado, por inexistir uma distribuição equânime da renda.

A complexidade da questão seria esclarecida apenas com uma leitura dos relatórios que acompanham a divulgação dos resultados do IDH pela Organização das Nações Unidas (ONU). Entretanto, eles não recebem, geralmente, o mesmo destaque que o simplório ranking de pontuação ganha na mídia noticiosa. Desta forma, o posicionamento do jornalista deve levar em conta o conhecimento do cálculo e os problemas que podem surgir de um exame superficial da estatística, seja no IDH ou em qualquer outro índice divulgado por organizações e governos, como os resultados das avaliações da educação do Brasil.

Quando se fala no jornalismo abordando a educação, é necessário que o repórter volte a um problema social que segue vigente, apontando o que é demandado para obter melhorias. Segundo Demo (1994, p. 15) "não vale a pena [no jornalismo] mascarar a desigualdade social" – e também os problemas da educação, que "aparece como estratégia fundamental de mudança no e do sistema". (Grifo nosso). O fato de se ter voltado ao mesmo assunto após uma evidente melhoria de um dos cenários estudados pode pressupor uma tendência da revista Nova Escola de guiar suas pautas a partir de críticas construtivas mesmo quando, possivelmente, o aspecto positivo se sobressaísse.

O dever do jornalismo, portanto, é fiscalizar, denunciar e cobrar que o Estado avance nas políticas públicas voltadas à melhoria da qualidade da educação. Aqui, o papel do Estado é planejar, proporcionar meios de realização e manutenção de políticas públicas que atendam aos anseios da população independentemente do contexto partidário – sustentando-se ao longo de diferentes mandatos, como exige o sistema democrático. Para que isso ocorra é necessário que haja, ainda, a participação dos cidadãos – já que a educação é uma exigência sempre presente na sociedade civil organizada. Precisa-se que o cidadão busque sua plenitude: participe e trabalhe/produza. Segundo Demo,

O espaço participativo revela, ademais, que política social não pode ser apenas pública. Parte dela – e muitos diriam: sua melhor parte – provém da própria sociedade, sob o signo do controle democrático do Estado. Política sindical, defesa da cidadania, identidade cultural, associativismo e cooperativismo são iniciativas que devem ser normatizadas pelo Estado, mas não submetidas a ele. Em grande parte se fazem apesar do Estado, à revelia do Estado, e mesmo contra o Estado (DEMO, 1994, p. 38).

Num cenário democrático, evidentemente, o Estado não pode obrigar a participação popular no movimento de construção dessas políticas sociais. Deve-se, contudo, trabalhar para que ela também ocorra. Exige-se, primeiramente, vontade política dos governantes para enfrentar não só a pobreza econômica, mas também a pobreza política da sociedade. Compreende-se a pobreza política, segundo Demo (1994, p. 21), como "a dificuldade histórica de o pobre superar a condição de objeto manipulado para atingir a de sujeito consciente e organizado em torno de seus interesses". Não se pode enfrentar a pobreza – econômica e política – sem a participação do cidadão considerado pobre, que sofre uma exclusão que por vezes o impede de perceber sua própria condição. Neste sentido, o autor salienta que "o pobre mais pobre é aquele que sequer sabe e é coibido de saber que é pobre" (DEMO, 1994, p. 19).

A pobreza política pode ser justificada pela deficiência no exercício dos direitos da cidadania. O papel do jornalista volta a ganhar destaque neste ponto, uma vez que ele deve agir no sentido de estabelecer uma visão crítica quanto às ações políticas, vigiando o poder, e fornecer à população as explicações que formem o conhecimento essencial da realidade e de sua função social.

Na sequência do artigo, empregamos a metodologia de Motta para analisar as reportagens escolhidas para o presente estudo, enquadrando-as dentro desses conceitos.

3. A repercussão de duas avaliações do ensino

Motta (2007) define as notícias como "fragmentos dispersos e descontínuos de significações parciais" (p. 147), prosseguindo com o aviso de que é necessário, para qualquer análise, conhecer as partes que formam o todo. As duas reportagens analisadas neste artigo se assemelham em sua origem pelo fato de estarem, ambas, relacionadas aos resultados de avaliações do ensino público no Brasil, divulgados havia pouco tempo quando da época de suas publicações. Por mais que a relação entre um texto e outro fique explícita por essas características, é simplista afirmar que o único fator desencadeante de cada um deles é, simplesmente, o conhecimento de tais estatísticas – que provêm, inclusive, de avaliações distintas, como veremos a seguir.

Começaremos analisando a reportagem mais antiga, "O desafio da qualidade", publicada na edição de outubro de 2006 da revista Nova Escola. Grande parte dos dados estatísticos apresentados no texto nascem daquela que era a "mais recente avaliação nacional" do Ensino Fundamental brasileiro, a Prova Brasil – que havia sido realizada pela primeira vez na história e cujos resultados se tornaram conhecidos do público em julho daquele ano. Na Prova, conforme o texto da reportagem, "os estudantes da 4ª série obtiveram em Matemática e Língua Portuguesa notas que deveriam ser comuns na 1ª [série]. E os de 8ª mal conseguem alcançar os conteúdos previstos para a 4ª". Entre os dados apontados, relata-se que uma "pesquisa nacional conduzida pelo Instituto Paulo Montenegro mostra que 74% dos brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, não conseguem ler esta reportagem".

Costin (2008), em texto no qual cita a própria Prova Brasil de 2006, contextualiza a situação das avaliações de ensino no país, e a importância do desenvolvimento delas. Ela também corrobora a ideia defendida em ambas as reportagens, de que o incremento no acesso à escola não se refletiu, necessariamente, em ganhos na qualidade do ensino:

Se analisarmos apenas os números referentes à universalização do ensino no Brasil e aos gastos do governo com educação, teríamos uma visão deturpada da situação educacional brasileira. Para se ter uma ideia, mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos passaram a ter acesso ao ensino fundamental na década passada. No início dos anos 1990, este índice era de 84%. [...] Alemanha, Irlanda e Japão investem [em educação] uma porcentagem do seu PIB menor que o Brasil. Uma análise focada nestes índices nos levaria a pressupor que o país progrediu como deveria no campo da educação. No entanto, o desempenho brasileiro em testes nacionais e internacionais revela que a realidade é bastante diferente. [...] Infelizmente, muitos governos ainda medem a eficiência da educação em suas regiões por meio do investimento e do número de alunos em sala de aula, fechando os olhos para o que realmente interessa: a qualidade do ensino. Daí a necessidade de implementar um sistema de avaliação (COSTIN, 2008, p. 176-177).

A reportagem de 2006 baseia-se nestes índices para dar justificativa à necessidade de iniciativas públicas e privadas que estejam focadas na melhoria da educação do país. É utilizado, então, o exemplo de um pacto divulgado em setembro daquele ano, apenas um mês antes da publicação da revista. O movimento em questão é o "Todos Pela Educação", que trazia consigo um plano de metas para a educação brasileira, a serem atingidas até 7 de setembro de 2022 – quando o Brasil completará o bicentenário da declaração de sua independência política. De acordo com a reportagem, o compromisso foi lançado por "um grupo de empresários e líderes políticos" e obteve apoio de jornais e emissoras de rádio e TV. Suas cinco metas básicas para 2022 eram: toda criança e jovem de 4 a 17 anos deveria estar na escola; toda criança de 8 anos deveria saber ler e escrever; todo aluno deveria aprender o que é apropriado para a sua série; todos os alunos deveriam concluir o Ensino Fundamental e o Médio; e o investimento na Educação Básica seria garantido e bem gerido. Em 2014, o Todos Pela Educação tornou-se uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), designação oficial que facilita eventuais parcerias e convênios entre as entidades privadas ligadas ao movimento e o governo.

Assim como a reportagem de 2006, a matéria "O acesso à escola melhorou. O desafio, agora, é a qualidade", publicada na edição de janeiro/fevereiro de 2011 de Nova Escola tem como pano de fundo a divulgação então recente de resultados de uma avaliação de ensino. Desta vez há um destaque maior à avaliação em si, e não a eventuais projetos paralelos que visem sua melhoria. Tal escolha no enfoque talvez se deva à dimensão da avaliação em questão que, em contraste com a Prova Brasil que inspirou o texto de 2006, agora se trata de uma prova internacional. A reportagem de 2011 é construída a partir dos dados obtidos pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), divulgado em dezembro de 2010.

No Pisa, que mede as habilidades matemáticas e de leitura dos estudantes de 65 países, o Brasil foi uma das três nações que mais evoluíram sua nota de leitura em relação à avaliação anterior. No contexto, porém, isso deveria ser visto com ressalvas – o país segue numa modesta colocação, a 53ª, entre aqueles que tiveram seu sistema educacional contemplado. A reportagem observa que os indicadores de evasão e repetência continuam altos no Brasil, números que se mostram prejudiciais a longo prazo, mas demonstra que certas iniciativas em relação ao ensino devem ocasionar melhorias. Nas palavras utilizadas pela repórter, "priorizar o Ensino Fundamental foi um acerto estratégico. O maior avanço é recente: a ampliação do segmento de oito para nove anos."

Enquanto na primeira reportagem nota-se um texto relativamente menos aprofundado, dando destaque para os números apurados pelos jornalistas, a segunda tenta se apoiar em declarações mais longas de personagens com autoridade no assunto, como ainda veremos neste artigo. As duas, porém, fazem extenso uso de infografia para elucidar as estatísticas, numa tentativa de aproximação com o leitor. Esta tática encontra simpatia em Costin (2008, p. 177), que nos fala sobre a missão jornalística de descomplicar avaliações: "o mais importante no processo de avaliação é a possibilidade de ele não se dar [...] de maneira que só o especialista na área consiga entendê-la. E é neste momento que surge o papel do jornalista, de traduzir [...] o que esses resultados significam na prática".

4. As experiências pessoais

A construção dos personagens em uma reportagem jornalística é feita a partir da ideia de que eles funcionam como atores na fundamentação da história, contribuindo com suas experiências pessoais para ilustrar os dados. São os responsáveis pelo vaivém dos acontecimentos e acabam, a partir da visão do jornalista, moldando a reconstituição do fato narrado. Conforme Motta (2007, p. 152), "o reconhecimento das personagens e de sua dinâmica funcional ocorre concomitantemente com a identificação dos episódios porque as personagens são atores que realizam coisas (funções) na progressão da história".

Em geral, este personagem pode ser o protagonista, o antagonista, o herói ou o anti-herói etc. Ele pode ser o centro da história e a referência de todos os detalhes, ou pode surgir no texto de forma breve, representando um contraponto ou uma visão distinta do mesmo fato que está sendo contado. A construção do personagem, entretanto, é feita de forma diferente no jornalismo e na ficção – no primeiro campo, mesmo que toda reconstituição seja apenas uma versão do fato, há um compromisso com a realidade que precisa ser verossímil para o seu público.

Na literatura, a construção dos personagens tem uma razão mais complexa no enredo e depende, apenas, da ficção que pretende o autor. Novamente recorremos a Motta, para explicitar o que aqui se entende por personagem, no cenário jornalístico:

a personagem jornalística guarda relação estreita com a pessoa, com o ser real objeto da narração. Isso gera uma complexidade singular. Mesquita [2002] defende, com o que concordamos, que a narratividade é uma característica dominante do teto jornalístico, guardando um parentesco com a narrativa da história e biográfica. Por isso, o investimento ideológico no texto não é menor que nas artes (MOTTA, 2007, p. 153).

A construção dos personagens, no entanto, ocorre de forma diferente na reportagem jornalística sumamente estatística, que é o caso dos dois textos que analisamos aqui, mais acentuadamente no primeiro, de 2006. Nesta espécie de construção, o personagem citado não tem o papel de desenvolver o acontecimento de forma direta, função exercida pelos números e dados apresentados. Este caso de produção jornalística tem personagens que aparecem em forma de fontes de consulta, e eles não são estudados ou observados individualmente como casos específicos.

As aspas, como são chamadas as declarações das fontes no jargão jornalístico, São um recurso para dar um toque de humanidade a uma apresentação mais dura de dados. Nas reportagens "O desafio da qualidade" e "O acesso à escola melhorou. O desafio, agora, é a qualidade", a relação dos personagens ouvidos com as estatísticas utilizadas é bastante visível. Desde o primeiro parágrafo se nota a clara intenção de abordar a problemática mais com números do que com exemplos individualizados.

O texto segue um caminho em que deixa evidente a escolha por criar personagens mais amplos de maneira genérica – isto é, os estudantes das escolas públicas de modo geral, os professores dessas escolas, e como aquelas estatísticas se manifestam sobre suas realidades. As reportagens, em especial a de 2006, servem como publicação para uma série de dados que convergem para um mesmo interesse: o aumento de determinados índices, principalmente o de acesso à escola, representado por matrículas e frequência escolar, e o aparecimento de um desafio que até recentemente era relegado em função da necessidade de colocar as crianças nas salas de aula – a melhoria da qualidade de ensino.

Deste modo, pode-se dizer que a escolha de tal abordagem para os personagens, sem individualizá-los, não é necessariamente uma diminuição da carga informativa da mesma, ainda que a reconstituição estritamente estatística pareça menos atrativa para o público leitor que, provavelmente, se sentiria mais envolvido ao ser exposto a uma história de um personagem específico, com nuances humanas no trato da informação.

5. Identificação dos conflitos

O conflito é parte intrínseca de uma narrativa. Através dele, o leitor obtém apontamentos para novas direções a seguir, uma vez que no conflito se funda uma diferenciação do pensar – uma abertura para diferente alternativas que permitam compreender outros aspectos daquilo que vem sendo o foco do texto. Motta deixa explícito que o conflito é ainda mais necessário quando nos confrontamos com uma narrativa jornalística, "que lida com rupturas, descontinuidades e anormalidades". Para o autor,

A situação inicial de uma narrativa jornalística é, quase sempre, um fato de conotações dramáticas imediatas e negativas, que irrompe, desorganiza e transtorna. É, portanto, uma situação dramática desde o início, um conflito ou situação-problema que desestabiliza, rompe o equilíbrio, traz ambigüidades. Pode ser a falta ou o excesso de alguma coisa, pode ser uma inversão ou uma transgressão, pode ser um conflito manifesto ou implícito (MOTTA, 2007, p. 149).

Nas reportagens que analisamos aqui, a identificação dos conflitos é uma tarefa que pode ser preenchida desde a simples leitura do título de cada um dos dois textos. No momento em que os repórteres expõem ao leitor que tratarão de um desafio, estão dizendo também que aquele é o conflito com o qual nos depararemos – no caso, alcançar a qualidade, que poderíamos entender por excelência, no Ensino público, em nível Fundamental e Médio, do Brasil.  Este desafio é decorrente de uma outra situação que, pelas estatísticas, pode ser considerada conflitante – o fato de haver um incremento em certos números que são notoriamente positivos, aqueles que correspondem ao acesso à escola, mas este aumento quantitativo não ser acompanhado por um crescimento qualitativo dos resultados obtidos pelos estudantes. A seguir, reproduzimos alguns trechos da reportagem "O desafio da qualidade", publicada em 2006:

Na mais recente avaliação nacional, o Prova Brasil, os estudantes de 4ª série obtiveram em Matemática e Língua Portuguesa notas que deveriam ser comuns na 1ª. E os de 8ª mal conseguem alcançar os conteúdos previstos para a 4ª. Enfrentar esse desafio parece, muitas vezes, uma tarefa impossível. Mas a verdade é uma só: assim como está, não dá para continuar! A boa notícia é que cada vez mais gente está percebendo isso - e se mobilizando para mudar essa situação dramática (Trecho 1).

Em junho passado, o Ministério de Educação (MEC) divulgou os resultados do Prova Brasil, mas o tema mereceu relativamente pouco destaque na mídia. A baixa qualidade da Educação nacional parece não chocar mais ninguém (Trecho 2).

Pesquisa realizada em 2005 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, o Inep, revelou que 78% das famílias estão satisfeitas com o ensino que as escolas públicas oferecem a seus filhos. Boa parte desses pais e mães não concluiu o Ensino Fundamental e se satisfaz em conseguir uma vaga para seus filhos em uma escola perto de casa (Trecho 3).

Dos fragmentos recolhidos, podemos atentar que, embora o Trecho 1 diga "a boa notícia é que cada vez mais gente está percebendo isso – e se mobilizando para mudar essa situação dramática", o que significa que há ação, o Trecho 2 nos aponta uma realidade antagônica a essa preocupação: o pouco destaque dado pela mídia noticiosa aos resultados da avaliação nacional do ensino público. Essa aparente falta de importância, decorrente do tratamento dos principais veículos de imprensa a uma informação que deveria ser divulgada com análises mais aprofundadas, passa a ideia de que, por se tratar de um tema que julgam batido e já muito decantado, há um sentimento nos jornais de que já não é válido seguir falando dele. Daí seria possível até inferir que a grande mídia noticiosa prefere não dizer mais nada por entender que tudo já foi dito e, por extensão, não há muito a ser feito com poder real de mudar a realidade.

O sentimento é percebido no texto da reportagem que aqui analisamos, quando se declara taxativamente que "a baixa qualidade da Educação nacional parece não chocar mais ninguém". Percebe-se que, apesar de haver uma certa mobilização, ainda falta conscientização quanto à importância do tema – tanto dos meios de comunicação quanto dos receptores da informação – para que o problema possa ser resolvido. Um exemplo disso está expresso no terceiro trecho, o qual apresenta a estatística de famílias satisfeitas com o ensino dos filhos, a maioria destas famílias composta por pais e mães que não concluíram sequer o Ensino Fundamental. Como tiveram um ensino precário, os pais muitas vezes se contentam com pouco e – por motivos como o conforto de ter uma escola perto de casa e a falta de uma mídia mais crítica em relação ao ensino do país, que abra os olhos para a importância dele – não percebem que o ensino de seus filhos carece de qualidade. Prosseguimos com os trechos:

97% das crianças brasileiras de 7 a 14 anos estão na escola. Os 3% que estão fora da escola correspondem a 1,5 milhão de crianças. [...] De cada 100 alunos que entram na 1ª série, só 47 concluem a 8ª série na idade certa, 14 terminam o Ensino Médio sem evadir e 11 conseguem ingressar no Ensino Superior (Trecho 4).

Os dados, numa visão superficial, escondem armadilhas. O texto jornalístico em questão esmiúça os números obtidos pelos repórteres em sua pesquisa, não dando espaço para que o leitor se engane. No entanto, se escrito por alguém menos preocupado com a profundidade dos dados, o Trecho 4 poderia incorrer no que Arce critica quando comenta a forma como são levadas a público as estatísticas referentes à educação brasileira:

Sem dúvida, é muito importante que o Brasil consiga matricular 97% das crianças na escola, mas atenção: matrícula não significa frequência. Dizer: "Brasil matricula 97% das crianças" não é sinônimo de "Brasil tem 97% das crianças na escola". [...] O Censo Escolar só conta o ingresso na escola, porém basta uma visita a uma escola rural para descobrir que, já no mês de abril, há menos alunos na sala de aula do que no início do ano letivo. A evasão é um dos grandes problemas da educação no país, mas ela não consta da numeralha oficial (ARCE, 2008, p. 286).

Além da evasão escolar em um único ano letivo, a saída de crianças e adolescentes ao longo de todo o período escolar também não pode ser ignorada. A reportagem cita que apenas 14% das crianças que ingressam na 1ª série conseguem terminar o Ensino Médio sem evasão, um número que fica ainda menor (11%) quando se considera o número de jovens que conseguem ingressar no Ensino Superior após uma vida inteira de estudos em escola pública. Fica evidente a necessidade de uma qualificação do ensino oferecido e, também, de uma postura política que tenha a intenção de não apenas matricular as crianças nas escolas, e sim de fazê-las continuar estudando. Partimos agora para uma análise dos conflitos da segunda reportagem analisada, publicada em 2011:

No Ensino Fundamental, 2,3% dos alunos dos anos iniciais abandonam a escola, segundo dados do INEP. Nos anos finais, o dobro. [...] Para combater esse quadro, o governo federal apostou no Bolsa Escola, criado em 2001. A medida é polêmica. Especialistas afirmam que a criançada vai para a escola só pelo dinheiro. Análises mais otimistas [...] mostram que a evasão entre eles é de 3,6%, contra a média nacional de 4,8% (Trecho 5).

Nota-se, no texto escrito cinco anos depois da reportagem original, que a ilustração do conflito que vem sendo abordado se mantém. Apesar de todos os esforços no sentido de ampliação do acesso ao ensino público, os quais vêm dando resultados quando observamos o número de matrículas, ainda existe uma considerável evasão entre os alunos matriculados. As ações tomadas pelo governo federal surtem efeito apenas parcialmente, beneficiando a maioria dos estudantes no momento da matrícula, mas sendo incapaz de criar condições para que parte deles se mantenha lá posteriormente.

As melhorias obtidas tiveram impulso depois da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996. Com ela, os municípios foram incumbidos de zelar pela Educação Infantil e os primeiros anos do Ensino Fundamental, segmento apontado como principal foco de atenção. E o governo federal se viu obrigado a estabelecer o primeiro Plano Nacional de Educação (PNE). Por outro lado, descumprimentos da mesma LDB explicam muito da timidez nos avanços. O PNE, por exemplo, deveria ter ficado pronto em 1997, mas entrou em vigor somente em 2001. Em dez anos de vigência, metas não foram atingidas devido a meandros legislativos da maioria dos municípios. Por fim, a falta de investimento ajudou a inibir mais conquistas, sobretudo no campo da qualidade (Trecho 6).

O trecho acima demonstra como a burocracia pode impedir o avanço em quesitos básicos da estruturação do ensino, um entrave numa fase tão inicial de qualquer política que ficaria difícil até mesmo falar em aumento de qualidade. Também se observa neste segmento de texto um outro aspecto que compõe uma das maiores críticas quando se fala em educação no país: a falta de investimentos, prova irrecorrível de que a agenda das políticas sociais precisa ser urgentemente revista, se a educação permanecer sem ser colocada no topo das prioridades.

6. Estratégias de objetivação e subjetivação

Entre as prioridades de quem escreve um texto de qualquer natureza, está a elaboração e o estabelecimento de uma forma de comunicação que permita a transmissão das informações desejadas. Não simplesmente o quê será passado ao receptor, mas também como isso será construído por aquele que escreve, de modo a serem gerados os efeitos de sentido esperados quando da leitura definitiva do texto em questão.

Tal objetivo se encontra em diferentes esferas de constituição textual, abrangendo áreas tão variadas estilisticamente quando a literatura pura, a literatura acadêmica de modo geral e os próprios textos jornalísticos produzidos e difundidos pela mídia noticiosa, entre outros. Em todos os casos, é evidente a intenção de elencar o que é dito de maneira a realizar, no leitor, um entendimento capaz de fortalecer e assumir como coerentes os fatos propostos pelo narrador – e até mesmo, no caso do jornalismo, completar as informações com outros conhecimentos, dada a impossibilidade de falar de determinado assunto em sua totalidade. Como explica Motta,

O leitor, ouvinte ou telespectador realiza a fusão de horizontes de expectativas porque precisa e busca encadear os fragmentados episódios das notícias com as difusas histórias de sua vida, repondo continuamente o ato de recepção na cultura, no mundo da vida (MOTTA, 2007, p. 163).

As estratégias de objetivação baseiam-se na construção dos efeitos de real ou de realidade. São estratégias linguísticas que buscam neutralizar e objetivar um texto. Para isso, o enunciatário se utiliza de expressões e dados que fazem referência à realidade para que esta seja "transposta" ao texto. Dessa forma, se constrói um "efeito de real". Nas duas reportagens analisadas, a forte presença de estatísticas referentes à educação é um exemplo claro de uma tentativa de reproduzir a verdade, como ocorre no Trecho 7, abaixo, retirado do texto de 2006:

97% das crianças brasileiras de 7 a 14 anos estão na escola. Os 3% que estão fora da escola correspondem a 1,5 milhão de crianças. [...] O Brasil investe 4,3% do PIB em Educação. O ideal seria 7%. [...] Das 162 mil escolas do Brasil, 25 mil não têm luz elétrica, 129 mil não têm acesso à internet, 40 mil não têm biblioteca e 10 mil não têm banheiro (Trecho 7).

Quando números e estatísticas são usados em um texto jornalístico, o objetivo do repórter é o de repassar uma ideia simultânea de rigor e veracidade ao que está sendo descrito. As estratégias linguísticas que conferem o tom de realidade a um texto, no entanto, não se restringem unicamente a estatísticas e a outros recursos numéricos obtidos por meio de pesquisa, como podemos ver no exemplo a seguir, saído da segunda reportagem, de 2011:

Divulgado em dezembro de 2010, o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, sigla em inglês) destacou o Brasil. [...] As melhorias obtidas tiveram impulso depois da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996. [...] Termômetros da qualidade, os indicadores de evasão e repetência continuam altos - ainda piores no Norte e Nordeste: 64% das crianças, em média, não conseguem terminar o Ensino Fundamental aos 14 anos. "Não se pode culpar o aluno por isso. A responsabilidade de ensinar bem é da escola, e o governo precisa ajudá-la nessa tarefa", diz Maria de Salete Silva, coordenadora de Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no Brasil (Trecho 8).

O Trecho 8 demonstra a variedade de maneiras de produzir os efeitos de realidade. Datas como "dezembro de 2010" e "em 1996" conferem referências temporais ao texto. O uso de nomes próprios de lugares como "Brasil", "Norte" e "Nordeste", e de instituições, como "Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)" dão um imediato efeito de real, por se referirem a instituições e a lugares conhecidos. Eles fazem com que o leitor se identifique. Este também é o caso do uso dos nomes do "Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa)" e da "Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)".

Outro importante instrumento é o uso de citações, no caso, das fontes consultadas. Segundo Motta (2007, p. 158), "as citações frequentes [...] conferem veracidade. São utilizadas para dar a impressão de que são pessoas reais que falam, que o jornalista não está intervindo". A autora da reportagem de 2011 utiliza-se várias vezes desse recurso, como fica explícito quando da utilização das aspas citando a opinião de Maria da Salete Silva, coordenadora de Educação da UNICEF no Brasil. Assim como os efeitos de real tendem a fazer o leitor sentir-se identificado com a "realidade" exposta no texto, as estratégias de subjetivação procuram induzir o receptor a diversos tipos de graus de comoção. Quem lê uma matéria deve ser levado, portanto, a fazer uma interpretação subjetiva dos fatos que ali estão sendo narrados pelo repórter.

Crianças de 5ª série que não sabem ler nem escrever, salários baixos para todos os profissionais da escola, equipes desestimuladas, famílias desinteressadas pelo que acontece com seus filhos nas salas de aula, qualidade que deixa a desejar, professores que fingem que ensinam e alunos que fingem que aprendem. O quadro da Educação brasileira (sobretudo a pública) está cada vez mais desanimador (Trecho 9).

O Trecho 9, retirado da primeira reportagem analisada, de 2006, possui uma forte carga subjetiva como um todo. Embora a tônica das reportagens seja a de não citar casos individuais ou personificados, o que em geral evita que se tenha uma interpretação mais emocional da questão, as enumerações que o parágrafo faz, das falhas percebidas na Educação brasileira, dão um ritmo à narrativa que é capaz de perturbar o leitor – não por ser uma má proposta de organização textual, e sim pela quantidade de deficiências enumeradas sequencialmente.

Quando o texto é visto em partes, podem-se, também, encontrar marcas subjetivas. A adjetivação negativa em "desestimuladas", "desinteressadas" e "desanimador"; as expressões negativas em "qualidade que deixa a desejar" e os verbos negativos em "fingem que ensinam" e "fingem que aprendem".

Os de 8ª mal conseguem alcançar os conteúdos previstos para a 4ª. Enfrentar esse desafio parece, muitas vezes, uma tarefa impossível. Mas a verdade é uma só: assim como está, não dá para continuar! A boa notícia é que cada vez mais gente está percebendo isso - e se mobilizando para mudar essa situação dramática. [...] Pesquisa nacional conduzida pelo Instituto Paulo Montenegro mostra que 74% dos brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, não conseguem ler esta reportagem (na verdade, não compreendem nada mais complexo que um bilhete). É espantador, mas é verdade (Trecho 10).

Os fragmentos acima, igualmente extraídos da reportagem de 2006, também demonstram o caráter subjetivo que se faz presente no texto. Expressões como "mal conseguem alcançar", "enfrentar esse desafio parece, muitas vezes, uma tarefa impossível", "a boa notícia é que cada vez mais gente está percebendo isso", "situação dramática" e "é espantador, mas é verdade", são indicadores subjetivos – devido à adjetivação e dramatização de tais trechos. Nota-se ainda a utilização de uma conclusão: "Mas a verdade é uma só: assim como está, não dá para continuar!", que, ao terminar com um ponto de exclamação, produz um efeito de advertência que chama a atenção do leitor.

Tais estratégias se encontram presentes também na segunda reportagem estudada:

O incômodo 53º lugar, de um total de 65 nações, nos manteve no rodapé da lista. Nada surpreendente quando se analisa a batalha por melhorias no ensino, travada nos últimos 25 anos. Avançamos, mas estamos longe do ideal. [...]Mas fica o alerta: é preciso garantir a formação inicial e continuada do professor e investir nela. [...] Mas a ideia de períodos letivos mais longos, sem a reprovação ano a ano, ainda causa arrepios em pais e professores. [...] A medida é polêmica. Especialistas afirmam que a criançada vai para a escola só pelo dinheiro. [...] Para tirar de vez a Educação brasileira da UTI, o acompanhamento do paciente deve ser constante (Trecho 11).

As marcas são percebidas de várias formas em diferentes pontos. Figuras de linguagem – no caso, a metáfora – como em "batalha por melhorias no ensino, travada nos últimos 25 anos" e "Para tirar de vez a Educação Brasileira da UTI, o acompanhamento do paciente deve ser constante" (grifo nosso). No que diz respeito à adjetivação, encontramos: "o incômodo 53º lugar", "nada surpreendente", "a medida é polêmica". As advertências aparecem igualmente, como na outra reportagem: "mas fica o alerta: é preciso garantir a formação inicial e continuada do professor e investir nela".

Advérbios que transmitem uma intensidade positiva ou negativa – "ainda" e "só" – e substantivos estigmatizados – como é o caso de "criançada" – contribuem na geração deste sentido desejado. Mas talvez poucas estratégias sejam tão efetivas quando se fala em subjetivação quanto o uso de expressões que se referem a sentimentos, como pode ser visto em "causa arrepios". São inúmeras as maneiras de subjetivar a reportagem. Algumas estão explícitas. Outras se escondem nas entrelinhas de um texto – ainda mais em reportagens de estilo mais impessoal como estas que estudamos. Tudo, porém, tem uma intenção. Nos casos analisados, os autores buscam convencer o leitor que a educação brasileira precisa melhorar, valendo-se para isso das emoções despertadas, ainda que de maneira tímida.

7. Considerações finais

A questão da qualidade da educação brasileira permanecerá ainda por muitas décadas como centro de discussões em todas as esferas da sociedade. Nos lares, independentemente do estrato social e da renda média das famílias, a comparação entre o sistema público de ensino e as escolas particulares será refeita muitas vezes, em geral com a conclusão de que o ensino privado permanece superior qualitativamente. Entre os professores, a luta de sempre por melhores salários e condições de emprego pautará muitas reuniões sem que nada seja resolvido num curto prazo.

Os críticos ainda terão muito tempo para questionar o porquê de os investimentos no Ensino Superior serem substancialmente maiores – e o acesso crescer cada vez mais – do que os do Ensino Fundamental e o Médio, pois por mais que se pretenda atingir a excelência nas rodas acadêmicas mais elevadas ainda é necessário lembrar que a maior parte dos cidadãos brasileiros é composta por analfabetos funcionais. A cada eleição o assunto voltará a ser tema dos debates.

Finalmente, a mídia estará lá para divulgar os resultados de diferentes avaliações do ensino, demonstrar ao público os investimentos e questionar (ou não) o que vem sendo feito. Tudo o que é dito no tempo futuro neste parágrafo e nos dois anteriores tende a se estender, como dissemos, por muitas décadas. A questão aqui parece não ser mais o que exatamente acontecerá quando se falar de educação no Brasil, e sim por quanto tempo acontecerá. O fato de haver um intervalo de meia década entre as duas reportagens aqui analisadas, tempo o bastante para abranger um mandato inteiro de um representante eleito para cargos executivos no Brasil, e o título escolhido para ambas ter sido praticamente idêntico – nas duas se falava de um certo desafio representado pela qualidade – atesta o quanto falta por percorrer.

É evidente que não se pode esperar que em cinco anos uma revolução do ensino público brasileiro seja feita. No entanto, não se pode ignorar a inércia governamental para a formulação de políticas públicas de longo prazo, que não tratem a educação como algo secundário. Hoje, apesar dos avanços notados, certas realidades difíceis de explicar permanecem – o Brasil ainda se baseia no número de matrículas do início do ano letivo e mantém um controle precário sobre a evasão escolar após alguns meses, alegadamente porque seria custoso demais monitorar as presenças dos alunos de cada sala de aula no final do ano, mesmo que muitas vezes esses dados pudessem ser obtidos através de sindicatos de professores ou outros órgãos regionais que têm o cuidado de realizar o controle de tal estatística (ARCE, 2008).

Do mesmo modo, é incompreensível que itens fundamentais como a mera revisão dos livros didáticos distribuídos pelo governo seja algo administrado de maneira pouco profissional e com displicência. Para ficar em exemplos recentes, podemos recordar o material de matemática distribuído pelo Ministério da Educação a escolas rurais em 2010, segundo o qual o resultado da subtração "10 – 7" era igual a "4", entre outros erros menos difundidos. Um investimento adequado em uma equipe de revisão mais rigorosa teria evitado enganos do tipo – é impossível saber quantos outros menos explícitos podem ter passados despercebidos e sem ganhar o destaque que este recebeu –, possíveis entraves no ensino e prejuízos financeiros (em se tratando dos livros em questão, falamos em gastos públicos na ordem de R$ 14 milhões para a impressão de material).

Além de avançar nesses pontos, as políticas públicas voltadas ao Ensino Básico não podem se esquecer dos aspectos que estão no entorno da educação. Deve-se investir na formação dos professores e na qualificação destes profissionais, sim – uma classe de matemática dada por alguém com especialização na área sempre será mais produtiva do que aquela ministrada pelo professor com uma formação generalista que precise preencher a falta de um profissional qualificado. Incentivar que os professores dediquem seu tempo – e, por vezes, seus recursos financeiros – num aprimoramento de seus conhecimentos, porém, passa também pela geração de oportunidades e incremento nos salários. Não há atrativo pessoal em gastar horas trabalhando ainda mais, por exemplo, em uma pós-graduação, se ao final do mês o contracheque apresentar valores semelhantes aos da formação anterior.

Ainda neste sentido, é cabível pensar que mesmo uma política educacional mais completa do que as adotadas até aqui, contemplando todos os estágios do ensino e possibilitando o desenvolvimento das qualidades dos corpos docentes, ainda assim poderia não ter sucesso total a médio prazo, visto que outro grande problema a ser combatido é a evasão escolar. Embora no longo prazo o aumento do nível educacional médio do país tendesse a reduzir muito os índices de evasão escolar, nos momentos iniciais parece ser necessário acompanhar os projetos ligados à educação com outras políticas sociais – estas direcionadas às famílias das crianças e adolescentes, com o objetivo de tornar clara a necessidade de permanência na escola e não deixar margem para que os pais enxerguem como mais vantajoso ter um filho a mais trabalhando e cobrando salários para sustentar o lar.

Da parte da imprensa, o trabalho é extenso principalmente no que diz respeito à interpretação das estatísticas governamentais e a forma como isso é levado a público. As reportagens aqui analisadas cumprem bem o seu papel neste sentido – trazem as estatísticas e são capazes de confrontar os números e buscar respostas para o que eles significam na experiência cotidiana. Mas isso é feito numa revista voltada a um público bastante específico – em geral os próprios professores e outras pessoas ligadas à área –, que é o caso da Nova Escola. Se os textos que aqui estudamos falam tanto em um "desafio da qualidade", também a mídia tem um desafio pela qualidade da sua cobertura em relação ao que é feito da educação do país – pautar, cada vez mais e em periódicos de grande circulação, esse tema. E não parar no contentamento vago de simplesmente reproduzir estatísticas sem interpretação, acreditando que tudo já foi dito a respeito, num conformismo de que não há o que fazer para mudar o cenário atual. Gerir bem os dados apresentados pelo governo, elucidá-los ao grande público, proporcionar uma interpretação que torne os números algo identificável na experiência cotidiana, a fim de promover um anseio por melhorias, são papéis que a imprensa ainda deixa escapar.

8. Referências

ARCE, T. (2008); Informação, jornalismo e direitos da infância: modelando formas de conhecer e pensar, em: Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo; CANELA, G. (org.); São Paulo: Cortez, 280-288.

BENCINI, R.; MINAMI, T. (2006); "O desafio da qualidade", Nova Escola, São Paulo. Disponível em <http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/dsafio_qualidade.pdf>. Acesso em 7 dez. 2014.

BOURDIEU, P. (2011); Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático", em: Razões Práticas: sobre a teoria da ação; Bourdieu, P. 11ª edição. Campinas: Papirus, 91-124.

COSTIN, C. (2008); Avaliação e monitoramento das políticas sociais: dever do estado moderno, em: Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo; CANELA, G. (org.); São Paulo: Cortez, 172-181.

DEMO, P (2007); Política Social, Educação e Cidadania. Campinas: Papirus.

FURTADO, C. (1964); Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura.

IPEA (2013); "Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE", Comunicados do Ipea, 159 (1º out. 2013).

MONROE, C. (2011); "O acesso à escola melhorou. O desafio, agora, é a qualidade", Nova Escola, São Paulo. Disponível em <http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/avaliacao/acesso-escola-melhorou-desafio-agora-qualidade-618018.shtml> Acesso em 7 dez. 2014.

MOTTA, L. G. (2007); Análise pragmática da narrativa jornalística, em: Metodologia de pesquisa em jornalismo; Benetti, M.; Lago, C. (Org.). Petrópolis: Vozes, 143-167.

PORTO, M. (2008); A mídia e a avaliação das políticas públicas sociais, em: Políticas Públicas Sociais e os Desafios para o Jornalismo; CANELA, G. (org.); São Paulo: Cortez, 182-190.


1. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Programa de Pós-Graduação em História, linha Relações de Poder Político-Institucionais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil. E-mail: mauribrum@gmail.com
2. Programa de Pós-Graduação em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, Brasil. E-mail: gabrielbortulini@gmail.com

3. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Programa de Pós-Graduação em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, Brasil. E-mail: iuri.muller@gmail.com


Vol. 36 (Nº 14) Año 2015
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